Texto de Fátima Lanna
Ela era feita de recortes e de cicatrizes. Recortes de lembranças que nem sempre se costuravam dando forma a uma história coerente e linear. Sua vida era composta de flashes fotográficos colados, posteriormente, em um grande outdoor preso a uma esquina de uma avenida qualquer. Ela ficava ali, solitária, observando partes de sua existência fotográfica serem rasgadas pelo tempo. Perguntava-se a todo momento se alguém, algum dia, viria e reconstruiria sua grande fotografia, orientado por seus sussurros através do vento.
A solidão da esquina não a incomodava. Sempre fora solitária. Nascera em uma casa grande, cheia de adultos que transitavam por ali. Dormiam, se alimentavam, saíam, voltavam. E ela lá, como um pequeno outdoor pelo qual passavam muitas pessoas. Algumas observavam, admiradas; outras apenas olhavam e seguiam seu caminho e outras nem se davam conta de sua existência.
Brincava só com suas bonecas e, com elas, começou a contar histórias. Vez ou outra, a amiga da casa da frente vinha brincar com ela. Ela gostava, mas a amiga tinha um jeito diferente de brincar, nada parecido com o que ela conhecia. Aquilo soava estranho, ao contrário de sua solidão que lhe era tão familiar. Principalmente quando se sentava na rede para balançar, ela e sua solidão. E balançava, balançava sozinha, às vezes tão alto que batia os pés na trepadeira que cobria o teto do caramanchão de sua casa. Ao balançar, pensava como seria sua vida quando se tornasse adulta. Se teria um namorado, se iria se casar ou se continuaria só, entraria para um convento ou seria uma solteirona independente, dona de um apartamento próprio e um carro que a levasse para qualquer lugar, assim como a rede a levava em direção ao céu.
Ela gostava de ler. Ler também é uma experiência solitária, não cabe outra pessoa ali a não ser as personagens da história. Ela, muitas vezes, entrava tanto nos livros que se tornava uma das personagens. Na adolescência, sem que os adultos da casa soubessem, leu “O Amante de Lady Chatterley” e se tornou Constance. Não se identificava com o marido, Clifford, que voltara da guerra paralisado da cintura para baixo. Semelhante a Clifford, ela tinha um defeito físico causado não pela guerra, mas pelo simples fato de sua mãe não ter comido verduras durante a gravidez. Ela mancava, o que a tornava diferente de todos os adultos da casa e das pessoas ao redor. Mas ela não era como Clifford, taciturno e fechado em seu mundo. Ela se parecia com Constance, uma mulher à procura de romance que começa um relacionamento proibido com o caçador que trabalhava na propriedade do marido. Assim como Clifford, ela possuía cicatrizes no corpo e na alma, mas não se fechava para o mundo. Ela era Constance e seu amor intenso e transgressor.
Foi esse amor romântico dos livros de literatura clássica, que brotavam aos montes em sua casa de adultos, que norteou toda sua vida amorosa. Não conseguia se enxergar ao lado de um homem pelo qual seu coração não tentasse sair pela boca ou sua barriga não sentisse um frio constante. Apaixonou-se várias vezes, algumas com sucesso, mas nada tão sério até que conheceu o homem que se tornaria seu primeiro namorado. Ela com 20 anos, ele com 18, dois jovens ainda virgens, mergulharam no universo profundo e vigoroso do sexo, assim como Constance e o caçador. O casamento veio como consequência e, logo em seguida, o filho. O casamento não durou muito, mas o sexo sim. Após anos de separação ainda se encontravam e os encontros acabavam em camas de motel sem o conhecimento do filho ou dos adultos da casa que ainda permaneciam em sua vida. Um dia, ela resolveu partir para outras experiências, o que fez o ex lançar uma maldição: “Você nunca mais encontrará alguém que te ame como eu”. Talvez pelos deuses terem sentido piedade dele, talvez por ela ter incorporado a maldição em seu subconsciente, ela nunca mais encontrou ninguém que a amasse como ele.
Hoje, quase idosa, como um outdoor rasgado pelo vento em uma esquina de uma avenida qualquer, ainda sente vontade de encontrar um amor. As cicatrizes se acumularam, o desejo sexual não é mais como antigamente, mas persiste a vontade de encontrar um colo aconchegante onde possa repousar sua cabeça e contar as histórias de sua vida rasgada pelo vento. Falar de suas poucas, mas intensas viagens para o exterior; de sua paixão pela música, de suas incursões pelas partituras musicais sobre o piano, instrumento tão solitário como ela. Falar de suas vocações ou da falta delas. Falar de seus medos que são e eram tantos, mas não a impediram de seguir em frente. Falar de seus poucos amores muitos e a permanência deles na costura malfeita de sua vida.
E enquanto aguarda o amor da maturidade, continua ali, na esquina, com seu corpo de cicatrizes rasgado pelo vento, esperando aquele que, com suavidade e precisão, cole seus recortes, a retire do outdoor e a leve para dar um passeio em BH, no Rio ou em uma estrela qualquer de um universo desconhecido.